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quinta-feira, junho 29

Acúmulo de poderes e transparência eleitoral

Por Amilcar Brunazo Filho

Nossas urnas-e são bem vistas no Brasil, já foram usadas no Paraguai e testadas na Argentina, mas nenhum país desenvolvido as adota e nos EUA estão sendo proibidas.

Uma explicação plausível para este conflito de imagens e avaliações é a incrível acumulação de poderes eleitorais do nosso Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, levado ao extremo, acaba por provocar um mascaramento da realidade da informatização do processo eleitoral entre nós.

A criação do TSE em 1932 visava democratizar as eleições brasileiras marcando o fim da época conhecida como a do Voto à Bico de Pena e da Política Café-com-Leite. Vários conceitos que são essenciais numa democracia moderna, como o voto universal, a inviolabilidade do voto e a transparência do processo, foram aperfeiçoados com o advento do TSE.

O problema clássico na distribuição dos poderes no processo eleitoral é a quem atribuir as funções de administração, de regulamentação, de fiscalização e de julgamento do contencioso. As soluções adotadas pelos diversos países são variadas.

É comum se deixar a operação das eleições com o próprio Poder Executivo nacional (como Finlândia e Argentina) ou municipal (como EUA, França e Alemanha), mas em alguns países (como Chile e Uruguai) a administração das eleições fica a cargo de órgãos autônomos não integrantes de nenhum dos Poderes tradicionais.

Já o Poder Judiciário nas eleições tanto pode ficar a cargo da Justiça Comum (como EUA e Itália) como ser responsabilidade de cortes especializadas.

Também a regulamentação e a fiscalização do processo eleitoral são exercidas de formas bastante variadas. Por vezes pelo Legislativo, outras vezes por instâncias diferentes do executivo. Por exemplo, em muitos Estados americanos a administração das eleições é municipal e a regulamentação e a sua fiscalização é de responsabilidade de órgão estadual, normalmente a Secretaria de Estado.


Porém o nosso TSE foi estruturado de forma sui-generis e, no processo eleitoral, acumula atribuições dos três poderes tradicionais - judiciário, legislativo e executivo – retendo responsabilidades por vezes contraditórias e conflitantes como: 1) administrar e operar todo o processo eleitoral; 2) regulamentar, por meio de suas Resoluções e Instruções, os procedimentos de todos os atores, inclusive os da fiscalização determinando como esta pode ou não pode proceder; 3) decidir, como última instância, todo o contencioso de natureza eleitoral, mesmo quando este envolva membros e comandantes da própria Justiça Eleitoral como parte no processo.

Apenas a fiscalização eleitoral não foi integralmente atribuída ao TSE, ficando parte dela a cargo dos Partidos Políticos. Mas a estes não é prevista nenhuma verba oficial para exercer a fiscalização e nem lhes é dado poder de regulamentá-la. Toda a verba governamental para as eleições, inclusive a verba para fiscalização deste processo, é destinado e controlado por este superórgão. Como fiscais, os partidos não têm com o que, e nem podem escolher como, fiscalizar.

Num equívoco inegável, deixou-se com o TSE o poder de regulamentar a fiscalização e ainda o controle de todos os recursos orçamentários oficiais utilizados em eleições. Também, não é raro acontecer que um juiz eleitoral julgue causa em que ele próprio é, por extensão de comando, o réu, ou que um ministro do TSE decida os limites de uma fiscalização sobre atos efetuados sob sua própria responsabilidade.

O Tribunal Superior Eleitoral é o único órgão integrante da Justiça Brasileira que detém funções administrativa e legislativa que extrapolam seu âmbito jurisdicional. Pode-se contar nos dedos de uma só mão, os países onde um só órgão acumula tantos poderes sobre o processo eleitoral como o nosso TSE.

De início, esta solução brasileira de ordenação dos poderes eleitorais funcionou bem. Deu maior credibilidade às eleições nacionais, pondo fim à desmoralizadora fama de eleições fraudadas que maculava a Velha República. E continuou a funcionar bem por muitos anos e eleições subseqüentes, nas quais até se falava em fraudes eleitorais localizadas, mas não se tinha mais a sensação de fraudes em eleições majoritárias, para governador ou presidente.

Porém as inconveniências desta acumulação de poderes passaram a ficar evidentes com a chegada da computação ao processo eleitoral, em 1982, na primeira eleição geral para governador depois do período de exceção militar.

O Caso Proconsult, ocorrido no Rio de Janeiro em 1982 é emblemático. Na primeira totalização dos votos realizada com auxílio de computadores surgiram indícios fortes de fraude em eleições majoritárias, o que não acontecia desde a fundação do TSE em 1932.

Ao longo da primeira semana depois da eleição, a totalização oficial caminhava e se anunciava a vitória do candidato Moreira Franco. A Rádio Jornal do Brasil montou um simples mas eficiente esquema de totalização paralela e conseguiu seguir simultânea ao oficial, mas anunciava a vitória do candidato Leonel Brizola.

Iniciada uma investigação, ocorreu uma debandada geral nos escritórios onde os trabalhos estavam sendo executados. Quando os juízes chegaram aos computadores da Proconsult, encontraram o local abandonado, papéis e mais papeis jogados no chão, os trabalhos parados. Cancelada e reiniciada a totalização, semanas depois a vitória era de Brizola!

Pode-se argumentar que a estrutura jurídico-executiva eleitoral funcionou, detectando e pondo fim à primeira fraude informatizada que acompanhava a primeira eleição eletrônica no Brasil. Mas não foi bem assim.

A investigação pela Justiça Eleitoral só foi posta em andamento quando a pressão popular e internacional se avolumou. O resultado oficial fraudado foi revertido mas nenhum responsável foi apontado. Tudo ficou registrado como um simples erro de programação, o Diferencial Delta. Um erro sem responsáveis.

Ainda hoje não se encontra na história oficial da Justiça Eleitoral nenhuma referência a este caso. Procure-se no sítio do TSE na Internet a história da informatização eleitoral e ver-se-á que, segundo eles, as primeiras experiências com computação teriam começado apenas anos depois da Proconsult!

É fácil entender o que levou a este vazio de punições e de transparência no Caso Proconsult. A rigor, neste processo jurídico a Justiça Eleitoral ocupava os papeis de Administradora da Apuração (Poder Executivo) e, por isto, potencial Ré; de Investigadora (Poder de Polícia); e de Juíza (Poder Judiciário).

Reverteram-se os resultados, pois não havia como manter a totalização fraudada, mas não se responsabilizou a ninguém, o que implicaria em denunciar interna corporis. O “espírito de corpo”, desenvolvido dentro deste amplo órgão eleitoral, resultou em escamotear falhas e atenuar a punição dos responsáveis de uma forma que parece ter se tornado padrão.

Por exemplo, segundo notícia no Jornal Zero Hora de 26/08/96, erros no cadastro eleitoral, que abriam margem para votação de eleitores fantasmas, provocaram a exoneração do Secretário de Informática do TSE em 1996, Sr. Paulo Camarão, pelo Min. Marco Aurélio Mello. Mas esta exoneração acabou sendo revertida e em 1997, com a saída do Min. Mello da presidência do TSE, o Sr. Camarão retornou para ocupar a mesma função de responsável técnico pela informatização eleitoral do país, onde se encontra até hoje.

A confiança que este obscurantismo e manto de impunidade dá aos atores internos da Justiça Eleitoral é tanta que os leva até a cometer abusos documentados, como no caso da Resolução 20.714/2000 do TSE, onde o Secretário de Informática do TSE, ainda o mesmo Sr. Paulo César Camarão, recorreu a falsidades categóricas para esconder da opinião pública graves falhas de segurança do sistema eleitoral sob sua responsabilidade. Negou, por escrito, a existência de oportunidade para que programas de computador secretos feitos pela ABIN - agência de inteligência sucessora do SNI – pudessem intervir na apuração dos votos.

Porém, o Relatório da Unicamp desenvolvido sobre o sistema de 2000 atestou que tal oportunidade existia de fato, comprovando que eram falsas as informações sobre o funcionamento do sistema que o Secretário de Informática do TSE incluiu num diploma legal. Mas nehuma conseqüência, nem mesmo uma advertência, recaiu sobre o Secretário de Informática do TSE por propositadamente desinformar os juízes, induzindo-os a erro de julgamento.

Em 1996, o TSE passou adotar as urnas-e para votação e apuração. Esta decisão é autorizada pelo Art. 152 do Código Eleitoral que, de forma clara e concisa, diz: “Lei 4.737/65 – Art. 152. Poderão ser utilizadas máquinas de votar, a critério e mediante regulamentação do Tribunal Superior Eleitoral.” Nesta norma é evidente a delegação de poderes executivo e legislativo ao órgão judiciário. Por meio de atos normativos chamados Resoluções, o TSE define autonomamente todas as condições em que as fiscalizações são permitidas. E o TSE usa e abusa destes poderes acumulados como demonstram vários casos documentados. Um exemplo é o caso dos programas de computador fechados mantidos até hoje dentro das urnas eletrônicas.

O Art. 66 da Lei 9.504/97 dizia que os partidos, como fiscais, tinham direito ao conhecimento antecipado de todos os programas de computador utilizados, mas a Secretaria de Informática do TSE decidiu comprar parte dos programas sem exigir que os fornecedores abrissem os códigos-fonte (programa de computador em forma legível para auditoria) para a fiscalização.

Em 2000, o PDT, partido liderado justamente por Leonel Brizola e bem no estilo “gato escaldado tem medo de água fria”, impugnou os programas alegando que parte deles era mantida secreta, contrariando a lei. O presidente do TSE, Min. José Nery da Silveira, como chefe do executivo eleitoral era o responsável por cumprir a lei e apresentar os programas aos partidos. Enfim, era o “réu da impugnação”. Mas foi também o relator e juiz deste processo e se auto-inocentou. Sobrepôs a lei dos direitos autorais à lei eleitoral, declarando que o TSE não precisaria mostrar aos fiscais os programas cujos direitos autorais não detinha!

A notícia divulgada pelo TSE, e entendida pela sociedade, é que “todos os programas foram apresentados e aprovados pelos Partidos”. Omitiu-se que este “todos” referia-se a somente aos programas de propriedade intelectual do TSE.

O recurso contra esta absurda decisão, de que a lei eleitoral não precisaria ser cumprida pelo TSE, foi apresentada para julgamento do próprio TSE, que é sempre a última instância nestes casos. Nunca teve seu mérito julgado. Ficou engavetado até depois do fim das eleições e foi arquivado “por perda de objeto”. Resultado, até as últimas eleições de 2002, o TSE ainda utilizou programas nas urnas eletrônicas cujos códigos fontes são mantidos longe dos olhos da fiscalização, e nada indica que deixará de utilizar.

Mas porque devem os fiscais ter que pedir ao TSE para poder fiscalizar?

E porque o TSE, o fiscalizado, tem o direito de negar ou ignorar este pedido?

A solução para esta situação que tem comprometido a transparência eleitoral no Brasil é obvia. Devemos desconcentrar os poderes eleitorais:

- Criar um órgão normatizador eleitoral, dentro do Congresso Nacional, retirando este poder do TSE.
- Criar um órgão executivo eleitoral independente de comando direto dos poderes tradicionais, como no Chile, por exemplo.
- Criar um órgão fiscalizador composto pelos Partidos, mas com verba própria.
- Manter no TSE apenas a função judiciária.